Mussum forévis

17/03/2010 06:54

 

Mussum forévis

O MAIS ALEGRE DOS TRAPALHÕES NÃO TINHA TALENTO SÓ PARA ARRANCAR GARGALHADAS. ERA UM ÓTIMO SAMBISTA, COMO É POSSÍVEL CONFERIR EM DISCO SOLO DE 1980 QUE FOI RELANÇADO RECENTEMENTE

O mais alegre dos “Trapalhões” não era um personagem. Antonio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, era daquele jeito mesmo, um palhaço adorável que não perdia piadas nem amigos e mantinha no rosto o sorriso largo que hoje estampa camisetas de Norte a Sul do País. Morto há 15 anos e transformado em símbolo pop, Mumu da Mangueira, o malandro que não largava a cachaça (ops, o “mé”) e acrescentava a terminação “is” a algumas palavras (na internet, há até tradutores português-mussunzês), está de volta com outra faceta, menos conhecida, mas tão boa quanto a de comediante: a de sambista.

Pois bem, não era à toa que Mussum fazia cara feia na TV quando escutava um samba ruim. O cara era bom, muito bom nisso. E foi por causa do jeito engraçado com que comandava Os Originais do Samba, grupo fundado por ele nos anos 60, que acabou virando um dos “Trapalhões”. “Ele era muito brincalhão. Fazia samba com humor, cantava fazendo gestos, caretas”, lembra o baterista Wilson das Neves, que o conheceu tocando na noite, com Os Originais. “Eu trabalhava com Elizeth Cardoso e às vezes a gente se encontrava nos aeroportos. Ele a chamava de bruxa, ela ria muito. Mussum era assim, espontâneo. Uma figura maravilhosa. Falar dele é falar de irmão. Não tem defeito (risos).”

Depois de mais de uma década à frente dos Originais do Samba, Mussum estreou em carreira solo em 1980, pela RCA Victor, com um LP batizado com seu nome, agora relançado pela Sony Music. Ainda faria mais um pela RCA (que também deve ser relançado pela Sony) e outro pela Continental. Wilson das Neves tocou bateria nos dois primeiros. José Milton, que foi vocalista de estúdio dos Originais, produziu os três álbuns. “Esses discos até hoje são clássicos nas rodas de samba”, comenta o produtor. “Mussum foi um dos melhores ritmistas que o Brasil já teve, tocou em gravações de muita gente. Era um cantor muito bom, versátil, e foi um dos primeiros, junto com Beth Carvalho, a gravar Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jorge Aragão, Beto Sem Braço, a turma do Cacique de Ramos.”

 

Canções para rir e para suspirar

 

“Mussum”, o disco, reúne 11 faixas – Aragão, Guineto e Sem Braço estão nos créditos de três delas – que dão o retrato do intérprete que gravava tanto samba romântico (“Um Amor em Cada Coração”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes) quanto bem-humorado (“Nega Besta”, de Arnaud Rodrigues, e a impagável “A Vizinha”, aquela do “pega ela, peru”, composta por Paulinho Durena e Alfredo Melodia). Variado, bom “pra cacildis”, o álbum traz também um samba-enredo que Martinho da Vila não conseguiu emplacar em sua escola (“Teatro Brasileiro”); uma cantiga de roda de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro (“Terra de Jó”), e até uma aula de história de Geraldo Babão e Walter Moreira, “Descobrimento do Brasil”, gravada com a participação de Didi, Dedé e Zacarias.

“Eram músicas de que ele gostava, a gente tinha repertório para fazer dez discos”, conta José Milton. “Mussum era muito musical, cantava, tocava vários instrumentos. Tocava o reco de metal como ninguém toca até hoje. E a convivência com ele era maravilhosa, sempre uma festa, com muita cerveja e baixa gastronomia. Sinto muita saudade dele, como amigo e como companheiro de trabalho, em estúdio. Tenho muita saudade, mesmo.”

O forrozeiro Chico Salles foi outro que conviveu bastante com Mussum nesse início de carreira solo no samba. Eram vizinhos, moravam no mesmo condomínio em Jacarepaguá, na zona Oeste do Rio.

Lá, criaram um bloco de Carnaval chamado Elas e Elas, em que os homens se vestiam de mulheres, e vice-versa. “Cada ano, a gente fazia uma música para o bloco. Um desses sambas chamava-se “Quer Alho?”: “Quer alho, meu bem, na sopa? Quer nabo, meu bem, na boca?”, cantarola Chico, num sorriso solto lembrando a “finesse” dos versos que fazia com o parceiro. “Éramos amigos de farra, de botequim, de cantar, de ir a show. Participávamos da vida cultural da cidade de forma intensa e assídua. Mussum era um grande sambista e uma pessoa muito bem-humorada. Sempre brincalhão, sempre animado. Onde estava o Mussum, estava a alegria.”

Entre os novos nomes do samba carioca, é difícil encontrar alguém que goste mais do ritmista do que do comediante. Até porque todos eles, quando meninos, adoravam assistir ao programa “Os Trapalhões”. O cantor Pedro Paulo Malta, que gravou discos como “Cachaça Dá Samba” (ao lado de Alfredo Del Penho), na infância até sabia que o humorista era mangueirense, coisa e tal, mas na época ainda não ligava para o telecoteco. Gostava mesmo era do malandro da TV. “Sempre fui muito fã dele”, conta. “Quando algum amigo da rua propunha brincar de Trapalhões, eu sempre escolhia o trapalhão do mé, do forévis e do maior sorriso do quarteto. A turma achava graça. Como é que o moleque branquinho escolhia sempre o Mussum, se todo mundo queria mesmo era ser o Didi? Eu estudava nos Estados Unidos em 1994, quando recebi a notícia da morte dele, numa carta da minha melhor amiga, e chorei demais. Dizia que ele tinha recebido um transplante de coração, mas que mal aguentou a Copa... Lembro como se fosse hoje dessa tristeza que me pegou ainda curtindo os ecos do tetra.”

 

 

Não, ele não morreu em 1994

 

Carioca do morro da Cachoeirinha, subúrbio do Rio, Antonio Carlos Bernardes Gomes nasceu em 7 de abril de 1941. “Diplomado em mecânica de precisão, ajustagem”, como ele dizia, foi militar por oito anos, “cabo especializado datilógrafo”. Fundou nos anos 60 Os Originais do Samba.

E foi por achar muito engraçado aquele cara dos Originais do Samba, que tocava fazendo trejeitos e arregalando os olhos, que Renato Aragão chamou Mussum para participar de “Os Trapalhões”. Ele agradou de cara. Era o malandro carioca que Renato queria para fazer companhia a Didi, o nordestino que tentava ser esperto para sobreviver, e Dedé, o galã da periferia paulista (Zacarias entraria depois, como o mineirinho ingênuo).

Mussum conciliou a agenda dos Trapalhões com a dos Originais até quando pôde. Na década de 70, com o quarteto no auge na TV e no cinema, deixou o grupo de samba. Com os amigos ritmistas, gravou 12 álbuns e ganhou três discos de ouro. Com os amigos de pastelão, foram 27 filmes.

O mais alegre dos Trapalhões se pirulitou na madrugada de 29 de julho de 1994, aos 53 anos, 17 dias depois de um transplante de coração. Ele tinha uma miocardiopatia dilatada. Foi tomado por uma infecção no pulmão. Morreu? Morreu, nada! Está aí, por toda parte, nos muros, nas camisetas, no sorriso largo dos fãs. Forevis.

 

MUSSUMANIA » Mussum é referência para nova geração de comediantes e está por toda parte

 

 

Hoje pode parecer incrível, mas naqueles tempos politicamente incorretos (“ui, ui, uuui!”), Mussum falava o tempo todo em “muié” e cachaça (“cadê o mé?”) e vivia satirizando a condição de negro (“negão é teu passadis”, “quero morrer pretis se estiver mentindo”) . “Imagina isso num programa infantil de agora! Na época dos Trapalhões, o politicamente correto não fazia parte do humor”, compara Welder Rodrigues, 40 anos, integrante da Cia. de Comédia Os Melhores do Mundo. “A influência de Mussum no nosso humor é gigantesca. É meu trapalhão favorito.” E não é que todo mundo ama Kid Mumu?
 
Érico Monnerat gosta de Mussum desde pequeno:    
Érico Monnerat gosta de Mussum desde pequeno: "Referência alegre"
Fred Braga, do grupo G7, é outro que acha o “Da Mangueira” o mais engraçado dos Trapalhões. “Ele nunca fazia um personagem. Era o Mussum. Não tentava esconder isso. Era um cara original e essa era a virtude que o fazia tão simpático”, acredita o ator. “Isso mostra que é possível fazer graça sendo você mesmo. E também que um humorista consegue fazer humor se ele se divertir enquanto o fizer. A alegria na vida é captada pela plateia, que se diverte junto. Isso é essencial e nós, no G7, tentamos copiar.”

Sim, para Fred, ser fã é querer “copiar” a pessoa, fazer o que ela faz. “E tem coisa mais legal do que querer ser ‘igual’ ao Mussum? Como não ser fã de um cara gente boa, que gosta de cantar samba e tomar cerveja? Cacildis!”, brinca o ator, que a toda “horis” repete um bordão do ídolo. “Esse lance de colocar o ‘is’ no fim das palavras é demais! O cara ‘sacaneia’ a língua falada e transforma o português em brasileiro! É uma apropriação da língua culta e sua transformação em popular, a língua do morro, das pessoas mais pobres, do Brasil. É também uma forma sutil de fazer outras pessoas rirem. Imagina você chegar no bar e pedir uma ‘geladis’? Na hora o garçom vai rir e trazer a mais gelada do bar!”

O malandro vive
Pelas ruas da cidade, é comum ver o sorriso largo de Mussum em camisetas, acompanhado das mais variadas frases. Está entre as estampas mais procuradas em lojas do Conic, como Ka-traca, Negro Blue, Verdurão e Kingdom Comics. Pertinho dali, o malandro — que inspirou até o título do segundo disco dos Raimundos (Só no forévis, de 1999) — aparece num muro da Via S2, que dá acesso aos anexos dos ministérios, numa pichação que fizeram: “Mussum vive! Salve a Mangueira”.

No Twitter, ele também está vivinho da silva no “Mussum Alive”, perfil falso criado por Leandro Santos, técnico mecânico de 27 anos. Leandro diz que inventou o twitter fake no começo de 2009, depois de tentar, sem sucesso, ganhar seguidores com seu perfil verdadeiro. “Não tinha muitos amigos e, na época, estavam na moda os twitters falsos, como o do Vitor Fasano. Então pensei em criar um twitter fake para ver se eu interagia mais. Mussum foi o primeiro personagem que me veio à cabeça”, conta. Com a popularidade do ídolo, em um mês o perfil falso já tinha 43.500 seguidores. Leandro conheceu tanta gente que acabou criando um blog de “humor etílico” (bebidaliberada.com.br).

Língua solta
Lauro Montana, 31 anos, professor de história, ator e DJ, nasceu no mesmo dia em que Antonio Carlos Bernardes Gomes: 7 de abril. E sempre curtiu o cara. “Era o melhor trapalhão que existia. Quando morreu, acabou tudo”, afirma. “Grandão e tosco” como o ídolo, Montana cai na gargalhada só de lembrar o jeito de falar engraçado, rápido, “aceleradis”, que sempre vinha quando Mussum ficava irritado no programa. “É um personagem que não teria nos dias atuais. Naquela época, havia liberdade para fazer o que desse na cabeça. Hoje em dia, a comédia é cheia de frescura, de politicamente correto.”

Para Érico Monnerat, produtor de tevê, 29 anos, essa liberdade de falar de temas tabus é um dos motivos que fazem a figura de Mussum persistir por tanto tempo — e virar mania nacional. Além do carisma gigante, claro. “Ele era um dos poucos negros na tevê naqueles tempos. Ele e o Tião Macalé. E eles ironizavam a questão do preconceito. Eram tipos bem brasileiros — malandros do morro, figuras que acabaram sumindo”, comenta Érico, que é fã do Mussum (e do Didi) desde pequeno, inclusive como sambista. “O trabalho como humorista acabou ofuscando o de cantor, mas antes ele tinha Os Originais do Samba, com discos muito interessantes, uma musicalidade bem legal. Era uma figura muito natural, por isso a gente tem essa referência alegre.”
 
O ator Fred Braga em frente à parede pichada na Via S2:  
O ator Fred Braga em frente à parede pichada na Via S2: "Como não ser fã de um cara gente boa, que gosta de cantar samba e tomar cerveja?"
Memória
De mecânico a palhaço
Carioca do Morro da Cachoeirinha (em Lins de Vasconcelos, subúrbio do Rio), Antonio Carlos Bernardes Gomes nasceu em 7 de abril de 1941. “Diplomado em mecânica de precisão, ajustagem”, como ele dizia, foi militar por oito anos, “cabo especializado datilógrafo”. Mangueirense — antes de ganhar de Grande Otelo o apelido que o faria famoso, era chamado de Carlinhos da Mangueira —, ele fundou nos anos 1960 Os Originais do Samba, conjunto que tocava desde E lá se vão meus anéis (de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro) até Aniversário do Tarzan (de Bidi, J. Carioca e Bonsucesso).

E foi por achar muito engraçado aquele cara dos Originais do Samba, que tocava fazendo trejeitos e arregalando os olhos, que Renato Aragão chamou Mussum para participar de Os Trapalhões. Ele agradou de cara. Era o malandro carioca que Renato queria para fazer companhia a Didi, o nordestino que tentava ser esperto para sobreviver, e Dedé, o galã da periferia paulista (Zacarias entraria depois, como o mineirinho ingênuo).

Mussum conciliou a agenda dos Trapalhões com a dos Originais até quando pôde. No fim da década de 1970, com o quarteto no auge na tevê e no cinema, deixou o grupo de samba. Com os amigos ritmistas, gravou 12 álbuns e ganhou três discos de ouro — o primeiro, de 1969, fez muito sucesso com Cadê Tereza? (Jorge Ben) e foi relançado há cinco anos pela BMG, na série Essential Classics. Com os amigos de pastelão, foram 27 filmes.

O mais alegre dos Trapalhões se pirulitou na madrugada de 29 de julho de 1994, aos 53 anos, 17 dias depois de um transplante de coração. Ele tinha uma miocardiopatia dilatada e, inicialmente, reagiu bem ao transplante. Mas 10 dias depois, foi tomado por uma infecção no pulmão. Morreu? Morreu, nada! Está aí, por toda parte, nos muros, nas camisetas, no sorriso largo dos fãs. Forevis.


 

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